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Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens

Por Manuel Roberto

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24.06.09

E se, em vez de um jardim zoológico, lhe propuséssemos uma visita a um centro de recuperação de animais selvagens? Não é um sítio onde se exibe a bicharada, eles estão lá para recuperarem de mazelas e serem devolvidos à natureza, mas as crianças costumam adorar descobrir segredos bem guardados, como garras de águias ou pêlo de ouriço. Depois da visita ao centro de Gouveia, Maria João Lopes (textos) e Manuel Roberto (fotos) andaram de cabeça erguida à procura de pássaros.


Binóculos em punho e meia dúzia de cabeças inclinadas para o céu azul à procura de diferentes espécies de aves que a olho nu não se vêem. Às vezes, só se ouvem, o que também conta nestas saídas de campo. Estamos em Riba Mondego, uma zona bastante calma e propícia para a observação de aves no concelho de Gouveia.

Já pelo telescópio, num céu recortado em círculo, conseguimos ver, algures num galho meio perdido, um cartaxo macho. Caminhamos um pouco a seguir, até uma zona à beira-rio, afundada em verde e árvores. Um bando de andorinhões passa. O veterinário que acompanha estas saídas conta que "dormem em voo" e que "chegam a fazer cópulas em voo". A actividade começou na zona de Arcozelo e Póvoa da Rainha, bem cedo, por volta das sete da manhã. O dia está quente, mas, ainda assim, todos continuam de cabeça levantada, à procura de pássaros das mais diversas cores e feitios. Alguns já descansam junto ao rio. Os barulhos da natureza fundem-se com o silêncio. Ninguém à volta. Só eles, invisíveis no céu.

"Hoje, já vimos e ouvimos cerca de 40 espécies. O som das aves também conta nestas observações. Vimos tentilhões, pintarroxos... Ouvimos um papa-figos... A ornitologia é uma actividade que vicia, quanto mais se sabe mais se quer saber. Algumas pessoas que já conhecem tudo em Portugal começam depois a viajar", conta Ricardo Brandão, de 31 anos, veterinário do Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (CERVAS), estrutura que promove estas saídas de campo, todas grátis. Há duas fontes de informação acerca destas actividades: uma é o blogue do CERVAS (cervas-aldeia.blogspot.com), a outra o "site" da Associação ALDEIA (www.aldeia.org).

"Inicialmente, é complicado... Há muitas espécies. Pode parecer que é impossível aprender o nome de todas, e assim de repente é, tem que ser uma aprendizagem de muitos anos. Mas pouco a pouco chega-se lá", garante o veterinário.

Normalmente, as saídas de campo para observação de aves começam bem cedinho. São, depois, interrompidas durante a hora de almoço, para se fazer um piquenique, e só retomadas quando o calor começar a abrandar, aí a partir das 17h00. "A ideia é sempre a de fazer piqueniques no campo. É a altura para conversarmos um bocadinho sobre as espécies que vimos de manhã, para depois ao final da tarde retomarmos", adianta Ricardo Brandão.

"Tentamos que o CERVAS também tenha uma acção exterior, como estas saídas de campo. É fundamental que as pessoas percebam que, mais do que ter os animais presos em casa ou conhecê-los num jardim zoológico, é importante conhecê-los na natureza", defende o veterinário.

Uma espécie de clínica

Depois de recompor o estômago num agradável parque chamado Curral do Negro, em Gouveia, aproveitámos o tempo livre e fomos espreitar o CERVAS, sempre respeitando o descanso dos bichos - afinal, esta é uma espécie de clínica onde eles são tratados e, depois, devolvidos à vida livre que tinham.

Também situado em Gouveia, no Parque Natural da Serra da Estrela, o CERVAS - estrutura que pertence ao Parque mas que se encontra actualmente sob a gestão de uma Organização Não Governamental dedicada ao ambiente, a Associação ALDEIA - tem como objectivos detectar e solucionar diversos problemas associados à conservação e gestão das populações de animais selvagens. São objectivos científicos e pedagógicos.

Os animais dão entrada no centro e são tratados. Ao mesmo tempo, tenta perceber-se o que aconteceu e que problemas afectam as espécies. Há, depois, todo um trabalho de sensibilização junto de graúdos e miúdos que é preciso fazer. Explicar aos adultos que não se pode ter animais selvagens em cativeiro ilegal, por exemplo. Aos mais novos, basta mostrar-lhes pêlo de ouriço ou garras de águia para eles arregalarem os olhos e tentarem convencer os pais a apadrinhar um bicho - o apadrinhamento é uma das formas de o centro angariar fundos.

O CERVAS - inaugurado em 2004, mas a funcionar em pleno desde 2006 - não é o único centro do país a desenvolver este tipo de trabalho, há outros. O importante é que, quando encontrar um animal selvagem ferido, saiba que é para estas "clínicas" que eles devem ir. Se tal lhe acontecer, deve evitar perturbar o animal, minimizando o barulho; usar uma toalha ou pano para cobrir a cabeça do bicho e colocá-lo numa caixa de cartão, com pequenos furos para que possa respirar. E, em vez de ficar com ele, deve contactar, entre outras entidades, a SOS Ambiente e o Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da GNR. É para um centro como o CERVAS que ele vai. Quer conhecer este "hospital" por dentro?

Milhafre fingido

"Embora não seja a principal aptidão do centro, é possível visitar o CERVAS. As visitas são para a população em geral. De uma forma controlada, sempre com marcação prévia, em grupos organizados. Nunca rejeitamos a proposta. Só tentamos é que isso não interfira negativamente na recuperação dos animais", diz Ricardo Brandão.

Entre outras infra-estruturas, tem uma sala de cirurgia, uma sala de radiografias, uma unidade de cuidados intensivos com jaulas de diferentes tamanhos, jaulas exteriores de recuperação, um túnel de voo, uma sala de necrópsia, um biotério para produção de alimento... Tem também uma sala com câmaras através das quais se pode ver o que a bicharada anda a tramar nas jaulas exteriores. Sem nos verem, é mais fácil perceber o comportamento real deles. Porque eles sabem fingir, como os humanos. Numa das jaulas, onde há mais do que um milhafre-preto, exemplares de águias-de-asa-redonda e uma ou outra águia-calçada, um dos milhafres, sentindo a presença de seres humanos por perto, faz-se de morto, não vá alguém fazer-lhe mal.

Não nos enganou, é certo, mas percebemos que não gostam de ser incomodados. Aliás, esse é dos primeiros avisos que Ricardo Brandão faz quando alguém quer visitar o centro: "O CERVAS não é um jardim zoológico. Nós não mostramos animais, mostramos o que fazemos com eles. É um centro de recuperação de animais selvagens que desenvolve investigação e educação ambiental. Portanto, o que mostramos é o trabalho feito no centro", alerta. Para bom entendedor, meia palavra basta. Comprometemo-nos a ver os animais apenas pelas câmaras se for necessário. Mas, afinal, até pudemos espreitar por aberturas nas portas. Via-se perfeitamente. Um alerta importante: não espere que seja um local romântico, cheio de vegetação onde, amiúde, lhe surge um animal selvagem. É tudo ao contrário. Não é um sítio feito para ser bonito e agradar a quem vai visitar. Só para ter uma ideia, há ratos mortos em banheiras nas jaulas, restos de sangue espalhados. Tem uma razão de ser: os animais são selvagens e, se vão ser devolvidos à natureza, não devem perder os instintos. Por isso, os ratos são dados de comer vivos, para eles caçarem. Se for sensível a este tipo de cenários, não vá.

Pelo contrário, se achar que pode ser educativo, pegue nas crianças e meta-se a caminho. Ainda que não tenha os tais contornos idílicos que imaginou e meta salas cheias de ratos (o biotério) ao barulho. Nessa sala de produção de alimentos, há ratos e ratinhos, todos ao monte, uns em cima dos outros, apesar do imenso espaço que existe nas caixas. Porquê? Ricardo Brandão rise: "Nós também não estamos todos ao monte nas cidades?", pergunta. Há-os brancos, cinzentos e pretos. Alguns são tão pequeninos como um dedo mindinho, nem pêlo têm. Acabaram de nascer, devem ter dois dias.

Gabinete de curiosidades

Às vezes o CERVAS parece um gabinete de curiosidades. O "kit" portátil preparado para os mais novos, então, é tal e qual. Só para ter uma ideia: Ricardo Brandão abre a caixa e lá de dentro tira - se os pais fazem um sorriso amarelo, os filhos abrem a boca de espanto - garras de Águia-de-asa-redonda. Pêlos de raposa. Pêlos de ouriço. Um crânio de bufo-real. Mais à frente na visita, até nos há-de mostrar frasquinhos com piolhos e carraças, uns exemplares inacreditáveis. Casos de estudo. Têm também um banco de penas, "uma reserva de penas de animais que entraram mortos ou morreram no centro" e que podem ser usadas para colocar noutros animais vivos que tenham as penas partidas.

O "kit" portátil que a equipa do CERVAS concebeu, com todos os sustos e segredos terríveis para desvendar, costuma ser eficaz a entreter a pequenada. Aliás, nas visitas que, por vezes, escolas fazem ao CERVAS, esta caixinha é mais importante do que andar a espreitar as jaulas e incomodar os animais, alguns engessados, de patas partidas... "Nas visitas, o mais importante é a conversa, com o ''kit'', à sombra, nas jaulas é espreitar e andar", diz Ricardo Brandão.

De qualquer forma, gostamos sempre de dar uma olhadela. Já viu uma cegonha-branca? Um mocho-galego? Um peneireiro-vulgar? Estas são apenas algumas das muitas espécies acolhidas no CERVAS. Já no túnel de voo - local com cerca de 30 metros para onde os animais vão quando já estão em fase avançada de recuperação, para poderem voar e desenvolverem a musculatura e o sistema cardiovascular - damos de caras com um abutre-preto. Não deve ter gostado nada de nos ver, porque vomitou umas três vezes. É normal, explica-nos o biólogo Samuel Duarte, de 22 anos, eles vomitam com o stress para ficarem mais leves e fugirem se se der o caso de sermos uma ameaça. Fixa-nos com o olhar, é a maior ave de rapina da Europa e a segunda do mundo (a primeira é o condor-dos-Andes).

Quando nos preparávamos para seguir viagem - continuar a saída de campo para observação de aves - eis que, de urgência, dá entrada no centro um bufo-real. Ficou preso num arame farpado em Estremoz e está ferido numa asa. O macho tem uns olhos amarelos gigantes e emite uns estalidos ferozes enquanto nos observa. "As principais causas de entrada são a electrocussão, as quedas de ninhos... Mas a causa de ingresso número um é o cativeiro ilegal", vai dizendo Ricardo Brandão, enquanto trata da ave, acompanho por Samuel Duarte.

Apadrinhar um animal selvagem

As visitas ao CERVAS são grátis. No entanto, se considerar importante apoiar financeiramente o trabalho do centro, pode fazê-lo através do apadrinhamento de animais. O mínimo é 15 euros. Se a espécie que escolher for mais rara, o preço é de 20 euros. Só paga uma vez e já é padrinho ou madrinha, com direito a certificado. Mas não se esqueça: vai ser padrinho ou madrinha de um animal que vai ser devolvido à natureza. A equipa do centro contactá-lo-á para assistir à libertação, se quiser. "Muitas vezes são os filhos que incentivam os pais a tornarem-se padrinhos. ''Eu quero apadrinhar aquele abutre, quero apadrinhar aquela águia''", conta o veterinário Ricardo Brandão, notando que, desde 2007, já reuniram 200 padrinhos.

Conselhos úteis

Se quiser participar numa saída de campo para observação de aves promovida pelo CERVAS, deve levar merenda, porque normalmente o almoço é um piquenique no campo. Não se esqueça dos binóculos; se não tiver, avise a organização, pode ser que lhe arranjem uns. É importante levar também um guia de campo, para poder identifi car e conhecer melhor as aves. Se quiser levar a actividade mesmo a sério, pode investir num telescópio. E, claro, não esqueça: roupa confortável, um chapéu e protector solar. As saídas de campo são grátis. Se quiser levar crianças, é aconselhável que tenham pelo menos 12 anos.

Como ir

Se vem da zona Norte, para chegar a Gouveia pode utilizar a A25, que liga Aveiro a Vilar Formoso. Deve sair em direcção a Mangualde/Penalva do Castelo e depois seguir na EN232. Se vem da zona Centro ou Sul pode utilizar o IP3 a partir de Coimbra e sair na EN231 e depois na EN17 até Gouveia. Uma vez chegado à cidade, há placas a indicar o Parque Ecológico de Gouveia e é nesse sentido que deve seguir. O CERVAS fica ao lado.

Onde ficar

Se quiser passar a noite em Gouveia, tem à disposição uma série de casas, muitas das quais dedicadas ao turismo rural. A lista pode ser consultada no "site" da câmara municipal - www.cmgouveia.pt - no item alojamento.

O que visitar em Gouveia

Se for ao CERVAS, pode optar por uma dupla visita, uma vez que ao lado fica o Parque Ecológico de Gouveia, onde também há bicharada para conhecer. Também situado em plena serra da Estrela, o Parque Ecológico de Gouveia foi inaugurado a 1 de Junho de 1999. Há percursos assinalados que pode fazer, pensados para que o visitante usufrua do espaço, ao mesmo tempo que conhece a flora da região. E pode ver, entre outros animais, veados, ginetas e aves.

Maria João Lopes (Fugas/Agosto 2009)



Última actualização a 20-11-2009
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